
Parar de dirigir não é — ou não deveria ser — uma decisão determinada pela idade, mas pela condição física, mental e emocional do motorista. É o que defende a psicóloga Cecília Bellina, referência nacional em comportamento no trânsito e tratamento do medo de dirigir. “A pessoa deve parar de dirigir quando qualquer um dos sentidos começa a falhar. Não é sobre estar velho, é sobre estar apto”, diz.
De acordo com o CTB (Código de Trânsito Brasileiro), não existe uma idade máxima para conduzir veículos. A partir dos 70 anos, a principal alteração é a periodicidade do exame médico, que passa a ser exigido a cada três anos. Ainda assim, cabe ao perito determinar intervalos menores de avaliação se houver suspeita de comprometimento físico ou cognitivo.
A questão, segundo Cecília, é que os exames realizados pelo DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito) são básicos e não conseguem identificar sinais mais sutis de declínio. “Problemas de atenção, lapsos de memória, lentidão de raciocínio, tudo isso aumenta o risco de acidentes e passa despercebido. O ideal seria complementar a avaliação com exames oftalmológicos e neuropsicológicos”, explica a especialista.
Além da visão e da audição, ela destaca o papel de outros sentidos. “O tato é fundamental. Se a pessoa começa a tremer, perde a precisão para manobrar. O olfato também pode ser útil — identificar cheiro de queimado, por exemplo.” Mesmo procurada para emitir laudos de aptidão para motoristas idosos, Cecília prefere não assumir sozinha essa responsabilidade. “Uma volta no quarteirão não é suficiente. É preciso um olhar mais amplo, que envolva profissionais de saúde e a própria família.”
Segundo a psicóloga, o impacto emocional de parar de dirigir costuma ser mais profundo entre os homens. “O carro representa autonomia, liberdade, status. Quando precisam abrir mão disso, muitos vivem esse momento como uma derrota pessoal.” Já entre as mulheres, afirma, há maior reconhecimento dos próprios limites.
Ela critica ainda abordagens familiares autoritárias. “Tirar a chave ou vender o veículo à força pode ser devastador. A pessoa se sente desautorizada, entra em sofrimento e pode até desenvolver pensamentos de morte.” O caminho recomendado é o diálogo empático. “Se possível, envolver a terapia familiar. Garantir que o idoso não se sinta um peso, mas parte das soluções.”
Cecília reforça que idosos, apesar de dirigirem mais devagar e cometerem menos infrações, não estão livres de riscos. “Há quem diga: ‘já estou na prorrogação da vida’. Mas não se trata apenas de morrer. Um acidente pode causar invalidez ou afetar outras pessoas.”
Por outro lado, ela reconhece que, quando o idoso está em boas condições, dirigir pode ter efeitos positivos. “Estimula o cérebro, mantém a autoestima. Mas é preciso se cuidar: manter-se fisicamente ativo, fazer atividades cognitivas, ter vida social. Isso ajuda a preservar habilidades essenciais para a direção segura.”
A psicóloga também critica a falta de preparo estrutural do país. “O trânsito brasileiro não é inclusivo. Não serve ao idoso, ao pedestre, ao ciclista, nem mesmo ao motorista novato. É reflexo de uma sociedade que não investe em educação cidadã desde a infância — apesar de isso estar previsto no próprio Código de Trânsito.”
Ela defende uma reformulação do modelo de formação de condutores. “As autoescolas ensinam a passar na prova, não a dirigir com consciência. E o DETRAN ainda não tem programas específicos para quem comete infrações, imagine para os idosos.”
Para Cecília, a discussão precisa sair do campo técnico e ganhar contornos mais humanos. “Trânsito é comportamento. É saúde pública. É cidadania. Enquanto continuarmos tratando acidentes como fatalidades e motoristas como números, não vamos avançar.”